quarta-feira

memórias pluviais

há uma escada que leva o seu tempo
num sorriso cariado
haverá chumbo
chumbo no coração

há quem suba
ora demais, ora nem assim tanto
já dizia a minha tia Tomásia
o amor é uma vertigem das nuvens.

na verdade

deus é um citrino
provo-o aos gomos.

terça-feira

a amiga e os fungos

a mulher chorava
sua cadela havia morrido
quem lhe iria lamber as lágrimas?

tudo tinha feito
biscoito do melhor osso importado
ou puro cubano “made in China”

por ela
iria a Meca
bateria no Muro
mas nem deu tempo de avistar a primeira placa para Fátima

num acto de compaixão
aliviara as dores com água benta
bendito suborno ao sacristão

noites infindáveis
de poesia sem colesterol
não fosse Celeste enjoar

mas já era tarde
partira
dizem que a causa foi pata de atleta.

sexta-feira

variações

no lugar que me resta

no lugar que me abriga

só a mente afunda

só a solidão quebra

peço desculpa pela previsibilidade

mas a minha lua já não trinca madrugadas

a maresia?

morreu na praia cansada de atropelar rugas

porém, traço-me sem linhas

peço desculpa pela incongruência

certezas?

quem dera

talvez arrisque

talvez oiça

o lugar que me resta

o lugar que me abriga

talvez devolva

a mente

a solidão

mesmo assim

retracto-me em retrato

num instante a preto e branco

cinza foi pavor

um dia

meu estrume será.

terça-feira

mímica

é nas palavras não ditas que me invento em fuga
ora como quase fui
a anos pus
do meu rosto
num afago à lua
caído aos pés
aos pés de uma boca.

segunda-feira

Antoinette

pela mão
uma árvore
sem tronco
virá

esperemos
numa madeixa

quarta-feira

andor

não sou vinil
quisera girar
não sou ponteiro
quisera bater
nas palavras
ou pelas palavras
as verdades têm tempo
e riscam o coração ao ombro.

sexta-feira

bilingue

amor?
tenho muito nas gavetas
caso haja dúvidas
as peúgas que o digam.

quarta-feira

implosão

talvez nunca como hoje
aos meus olhos
os prédios ruíram
onde pó virou nuvem
a nuvem virará lama
eu serei quase metade
dessa fachada que há em nós
talvez aos meus olhos
hoje como nunca.

sexta-feira

yesterday morning

i thought
trampling woman slippers plastic apron over pajamas
a shame to be so nice
sketching and just smile with her front teeth

i shook my dandruff coat
smashed accounts with fingers on the table
multiplied money previously borrowed

i yawned
whatever the reason
but who said we needed to inspire?

i made a poem vomit
whatever that is
kneels before love

i saw a movie
postcard from other movies
deafened by the sound of the piano car

fish with no name became fish sewage
peace to his flipper

i cried feathers
then dreamed
suddenly remembered an aunt:
- masturbation is a lesser evil.

quarta-feira

oblíquo

não quero uma dor lúcida
janela que seja reflexo
nos dias de chuva um risco
como tantos em contramão
quero uma cova aos pés da alma.

domingo

verdura de poema

chamava por mim
lânguida e míope
não era uma ervilha qualquer
posso dizer sem tortura
pelo primeiro garfo de plástico
da boca ao estomâgo
foi amor rasar o coração

quinta-feira

,

loas, loas ao pentelho
num quadro de honra
a montante duma selva
palavras que nos rouba
à respiração sentida
ainda ontem as chorei
velei, velei pelos versos

quarta-feira

breviário dos flocos encefálicos

ámen
há cem gatos para afogar
em guronsan no rio vómito
[ ]
guru:
é ser zen
quando não se espera
expelir pus da alma
[ ]
3,14 vezes 3,14 vezes
desligam-se os monitores de sinais vitais

terça-feira

distribuição normal

uma pilha
uns quantos neurónios
em forma de sino
não rebate
como se fosse consciente
o estado em perda
sobreaquece-me

sexta-feira

marcha gole em tic-tac

tenho um relógio sem ponteiros
para o tempo fugir pela saudade
amanhã entre outros seremos
nessa artéria que se fez
talvez de uma língua
trago do teu mundo
apenas fumo
apenas

quinta-feira

figuras do lado de cá

Vivo num subúrbio e sinto-o

A Dona _________ gaba todos os Domingos
é vê-la combater uma praga de formigas sem desviar o olhar da missa dominical

O Sr. _________ tem ataques diarreicos
mal dizem que talvez se encontre num estado volátil de sexualidade

O menino ___________ doa esperma aos turistas
para depois lhes retirar os melhores órgãos com uma colher de sobremesa

Eu?
estou à procura do caniche da minha vizinha
trilho um carreiro
oiço gritos
esvaio-me em penas
oiço gritos
fígados da alma
oiço gritos
foi corno posto
foi corno posto

Vivo num subúrbio e sinto-o.

terça-feira

PVC

De pernas bem abertas
o choro não cabe na bacia
gritos rasgam a pele
o choro não cabe na bacia
dedos como pente da alma
o choro não cabe na bacia
gota a gota
transbordou morte.

segunda-feira

?

Perguntam-me o que trago nas mãos
ostras de plástico
envoltas num bordado
ponto de luz

Perguntam-me se já fodi
todos os dias
em silêncio
e quase sempre o silêncio

Perguntam-me por palavras destiladas
responder-lhes-á o meu fígado
que Deus não oiça
nem veja
que Deus tropece nos dias.

sexta-feira

N#.#####º W#.#####º

comprei um manual para a felicidade
estranho como tudo se pode orientar
sintam isso
quando o coração muda de rota
não há gps que nos valha
reparem nisto
comprei um manual para a felicidade
e do prefácio à saudade vai uma curta distância
vejam bem
são dois dedos
dois finos dedos de poesia.

quinta-feira

colagens

sendo certo que para o amor já contribuí
aguardo uma qualquer factura

nosso mar vai cedendo
espuma aos dias maltratados

sendo certo que para o amor já contribuí
aguardo uma qualquer fractura

nosso mar vai cedendo
areia aos dias maltratados

sendo certo que és mais barro
moldo
até partires
moldo-te
até partir

sexta-feira

senhor perónio


é devoto; até à unha encravada do polegar esquerdo; não de uma qualquer santinha perdida no lote da quinquilharia avulsa que ainda hoje religiosamente guarda no bidé mas sim da andorinha que a cada hora rasa o quadro aguarela com vista para um prado verdejante. já tentaram impingir uma cotovia, tamanha afronta para quem recusa viver numa outra estação que não seja a primavera só pela sua ludovina que chegou a morar na vivenda bina . acreditem! o coração que traz no peito deixa de bater. previdente, nem assim morre. tem sempre o coração da cabeça em modo gerador que lhe autoriza esperar pelas primeiras flores.

quinta-feira

pulmonar

peco por omissão
afinal
tenho muito
muito
muito amor
nos pulmões

nódoas de beata
riem?
estejam à vontade
sentem-se
trouxeram lenços?
pois tossi
digam a deus
adeus

segunda-feira

Dona Tíbia


tinha dois dedos únicos. fazia carícias como ninguém, até as vendia para fora. passava noites a folhear peles e nenhuma artrose lhe moía os sonhos. já velha, dizem que morreu de vómito quando leu “carpe diem” numa omoplata.

sexta-feira

indefinida asa

viemos para aqui
sem mãos
trouxe-nos uma palmilha
tão grande quanto _____

viemos até aqui
sem pés
trouxe-nos uma palma
tão grande quanto _____

juntos

quebraremos joelhos
com a cabeça
seremos cinza
num abrir de olhos
aterraremos
em almas
assim nos queiram cortar o céu

um gomo para ti
sumo meu.

quinta-feira

arquivo

são coisas
para mais tarde mutilar
o nervo da alma

são coisas
pequenas coisas
sempre a cair
como ladrilhos soltos
pelo teu olhar

são coisas
amálgamas do destino
no atropelo às rugas

fosse meu corpo uma caixa
guardaria todas essas coisas

fosse o corpo teu frasco
inalaria saudade

não
pena não ser ocre do tempo.

quarta-feira

no dia de folga


alguém fez diligências, fez tempestades. mascarou-se de Deus e amanhã fará poesia. hoje, só hoje, resta-lhe cortar os dedos com as palavras. finalmente, será um ponto que chegou ao ponto de amar.

terça-feira

ofertada

nem ouro, nem mirra, nem coentros
quatro borbulhas se tanto
o diabo há-de esfregá-las
na cauda de um cometa
enquanto voa um bom pastor

vá que o verbo não venha
a puta ainda fica apeada
conta cinco botões pelo chão
rosa, lindos e amestrados
batem palmas aos mamilos

ai, ai, ai,
querem ver uma unha encravada?
cuspam sem temor
a mim
meus caros
ninguém engolirá

vá que o verbo não venha
ao quinto, sexto e sétimo dia
fui de retro
fui de mar
no fundo
agarrei a onda pelos cornos

a puta ainda gritou:
espere por mim

apanhe outra esquina e mais botões.

segunda-feira

aos pulos, aos pulos


era ninguém e só por ser ninguém comeu um pouco de lua. indigesta, fez-lhe arrotar manhãs avulsas. agora, diz-se arrependido. pudera. nada como um bom sapo.

sexta-feira

a trilhos


não havia mais e nem tão pouco quiseram pedir que assim contrário fosse. ergueram-se as línguas para tocar o céu. um perdeu o pé direito. outro nem soube o que lhe restara. das cócegas fez-se chuva. no caminho, findou a certeza, jaz como alga um caso de amor esgotado.

quarta-feira

Quando rebentares

Dar-te-ei um oceano
Que Deus não saiba
Nada
Pelas vagas
Abrirás caminho
Irão contigo
Até aos olhos
Do cu
Que Deus não abra
Nada

sexta-feira

"o futuro a Deus pertence"


ele trouxe, juntamente com a alma, um abat-jour. Só assim conseguiria enfeitar o que à língua lhe haviam colado. uma palavra, sem pé para andar de ouvido em boca, desmaiou mal os raios o atingiram. seria amor? ninguém testemunhou. o tempo fundira-se com a miopia. talvez um dia chegue. talvez a cura.

quinta-feira

segunda-feira

de todas as cores


o peixe entrou pela janela
sem escamas abracei
até morrer de asfixia

a lua entrou pela boca
sem quartos devorei
até morrer de asfixia

já morto
nado no céu

mariposa, para que vos quero engarrafar?

quinta-feira

Na campa


a família trouxe uns apêndices. é sempre assim quando cheira a tinto. com bocas esfomeadas, soprou-se o pó da lápide. as manchas das flores secas rapidamente desapareceram. graças aos santos, ainda há quem se preocupe com os detalhes e leia o rótulo de uma boa lixívia. a matriarca lançou o lençol de flanela. aquele padrão aos quadros lembra-lhe sempre as noites em que limpou o rabo do seu finado esposo. mesa posta. contaram-se histórias, umas mais vividas que outras. os sorrisos amparavam saudades e as côdeas de broa cumpriam seu fatal percurso até ao intestino. houve quem jurasse ter ouvido o velho Júlio: «não rezes, dás-me cabo dos ossos».

quarta-feira

A beata avulsa e o bife da vazia


chamava-se Maria. era uma beata como tantas outras e ponto. pura, simplesmente não depilava as pernas e vírgula. no dia 01 de Julho, morreu de desgosto e reticências. dizem que já nem se presta à vassoura no adro e aspas. suspeita da vaca Mercês e parêntesis. a mesma teria sido sodomizada pelo querido filho Manuel e parágrafo.
Deus rascunha com os pés e travessão. vingou-se sem pontuação pois ironia das ironias Mercês acabou atravessada numa garganta.

Exposição menor

Ama do meu corpo
vomita umas pedras
lembra
os beijos que vazo
são raspas de pele

Ama do meu corpo
dorme na sopa
fi-la ontem
bem azeda
depois da história
do aconchego
a solidão.

segunda-feira

Ponto vela

O meu coração?
fez hoje dois passos que não o sentia
manco de saudades
trilhou uns lábios
com palavras suspensas
falou mais alto que uma pedra
na volta
trilhara-se no eco.

terça-feira

Aviso

No alto do meu bonsai
culpo o céu por ter estrelas
peneiro algas com recheio a saudade

Tomara chova.

segunda-feira

O prepúcio da Dona Prazeres

Descoberto
no último dia da romaria
o vento soprara um “ai Jesus” tal
que andor foi-se embora ao pé coxinho
a saia plissada verde couve lombarda rasgou-se
de cima a baixo
em sorrisos desfez-se uma procissão.

sexta-feira

Ciclo do doente

Tenho um fungo no meu peito
causa espanto a quem se aproxima
pois viro amor para dentro

E dentro
quero estancar hemorragia
que me há-de consumir
até deitar amor para fora

Mas fora
tentarei vazar olhos
com imagens de gestos lascivos
nesse quadro policromático do desejo

Desejo quando vem
também pode ir
e se vai
nasce um fungo no meu peito.

terça-feira

Poesia para as aves migratórias

Viva a canja de galinha e seus derivados.

segunda-feira

Em cacos

No vaso está uma bolacha
vomitada em forma de lua

No vaso está um raios-x
com raio de pulmão fumado

No vaso está uma pagela
mortificada pela amargura

E eu?
Estou no vaso
feito barro de mim.

sexta-feira

O meu poema mais leve

Partira num sopro
o que foi uma pena.

quinta-feira

Minha dor Lusitana

Tropeçou na calçada
entre Nabia e Duberdicus
rasgou os lábios
partiu dois dentes
ficou perneta
mal de si
larguei-a num bueiro
como um rio em agonia.

quarta-feira

Talho

Ao balcão

Uns gramas de dor laminada
assim se pesa o coração

Um patê gourmet-saudade
assim se prova o desgosto

E o melhor presunto da traição
assim se salga

Por detrás

Sou talhante
um de muitos
talvez errante

Sou nervo
sangue roxo
em mim
por mim
na minha dor.

terça-feira

Antes

equação sem igual na quadrícula
orelha de cera a cumprir promessa
napron tricotado por cinco pés, quarenta e nove unhas
pus do ontem para memória futura
suspiro farto em plasticina
revolução florida pelo cano

que mil esperas vindas depois.

segunda-feira

Mescla sacrifício

De comum acordo
fez lugar para morte
essa que há-de vir
lembra
lembra-lhe todas as horas
na caveira da raposa

Meu lindo menino
agasalha o pescoço com uma corda
arranca olhos ao teu pai
por ver assim
tão perto da terra o inferno

De comum acordo
deu lugar à morte
essa que já veio
esquece
esquece-lhe todas as horas
na caveira da raposa

Meu lindo menino
és capaz
pinta a cara de angústia
e assobia
rabisca um milagre
como a cruz pesada dos dias em branco.

No Domingo

Tomei uma chávena de fé
com pão integral e manteiga amiga do colesterol

Há manhãs assim
que nem os passarinhos aguentam

Fui à missa desafinar duas vezes

Não contente
o telemóvel tocou "A Portuguesa" durante a homília.

Redenção?
Aberta a boca
trinquei o corpo do Senhor
colou, colou-se em mim uma tristeza

Teria sido um sinal
afinal a centralina do carro avariaria mais tarde.

quinta-feira

Bloco de perdas

esqueci-me
dos dedos
da boca

sou esse mundo
morto em cada neurónio

no que sonho
esqueço-me
de esquecer o amor

e choro olhos
por ontem
ondeio saudades
ainda hoje.

quarta-feira

Alguém passa

São as raposas
velhas como rugas
riem da falta de chá
mas que erva?
hipericão, sei lá

São os cornos
juram por tudo
até pelo amor
e na falta dele
fodem, sei lá

São as raposas ao pescoço
esganem
mas com juízo
os cornos?
na parede, sei lá.

segunda-feira

ELE

É um homem crente
no pai desconhecido
na mãe bipolar
no efeito diurético da palavra de Deus.

É um homem romântico
pois que sim, pois que talvez
cause estragos na próstata
todo e qualquer final feliz.

É um homem idealista
o céu foi-lhe prometido
mesmo de nuvem cheia
calça 44 mas nem se nota.

Diz e repete:
Se não fosse um homem crente
seria uma mulher
chamar-me-ia Linda
e linda carregaria um ninho de andorinhas
com a cabeça numa cesta.

quarta-feira

Tão perfeito

… o meu amor

planta árvores nos ouvidos

doa remelas ao espelho

faz ninho no umbigo

boceja peixe frito

cava mais fundo as meias

foge perneta de mim.

terça-feira

E o bastardo é

Há quem vaze olhos e de seguida os devore

Há quem busque gnomos nos gânglios linfáticos

Há quem respire ilusões avulsas

Há quem viva a tapar poros

Com pó de gente

pode a gente engravidar

num espirro de poemas gémeos

em que o amor se ri da rima com suor

Há um ponto

Há uma vírgula

Entre o finito e a pausa, nasceu o ponto e vírgula

Paz ao seu berço

segunda-feira

Teorias

Folhas secas e uma laranja podre
Foi tudo quanto restara
Desde que a lua pisou o sol
Estaria com pressa?
Atrasada para o emprego?
Tropeçaria numa nuvem menos calçada?
Certo, certo só Galileu
E nos meus ouvidos o choro do sol ao pé-coxinho.

sexta-feira

Fluxos migratórios

A Marília após duas operações às maçãs do rosto vira completa
O Manuel descose o fecho éclair ao carregar um saco de fermento
A Rosa trabalha na ménage mas diz que não tem mais líquidos
E eis que sopra uma rabanada de vento
As andorinhas da vivenda Sãozita planam pela última vez.

terça-feira

Bestial criação

Cria uma pia feita a crias de gente

Cria órfão peixe-gato

Tu que querias recriar tal história do príncipe estigmatizado

Cria uma cria e fornica com ela

Cria-te todos os dias em papel

Sê Crente

Acha

Nódoa

Rosa

Sabonete

Borracha

Lousa.

segunda-feira

Espanquei a palavra

Fi-la engolir uns quantos raminhos de salsa
Não fosse regurgitar o suco gástrico do amor
Por amor a Deus
Terá ficado imune ao altar
Pois lembrem-se
Recusas de puta não chegam ao céu
E em verdade
Em boa verdade vos marro
Há sempre uma palavra do dia seguinte
Amanhã

sexta-feira

Primavera/Verão

Tendencialmente um coração fraqueja mais que um rim
Direito ou esquerdo?
Pouco importa

Tendencialmente alguém questiona se o amor acabou
Cedo ou tarde?
Pouco importa

Tendencialmente as palavras importam sentidos a outras
Canibais ou não?
Que se comam antes com todos os dentes disponíveis

Alguém vandalizou o papel de parede do quarto
A ladear, meu Jesus, deixou o aviso:
“Para a próxima, segue a moda!”

Esqueci
tendencialmente de moreno passou a loiro.

quinta-feira

Rosto de areia

Adoro sorrisos amarelos
pisco-me o olho
sorrio
da minha dentição nem falarei
pois insistir de boca cheia é feio

Não esperem um coração aberto
para isso há cirurgiões
para esperas somam-se filas
e faz vento desde que foste madrugada no meu polegar

Espasmos
espasmos meus
Deus acode
tão fácil invocar-te
até esqueço dúvidas

Na bóia ou sapato
sonho com a cova no mar
virar alga
entranhar-me num búzio
ir de vela
ir

quarta-feira

Batam palmas

Mas não aqui
o artista bateu com os cornos no céu
deverá, portanto, respeitar-se um minuto de aguaceiros.

terça-feira

Registo ameno de uma foda ode

Morte
ao barro
sobra-nos em mãos o que temos em plástico

Morte
aos apêndices
em lista de espera pela cirurgia da palavra

Morte
à viúva
mais suas lágrimas aos calcanhares dos santos

Morte
às Acácias
quisera nem cheirar sombra de tal nome

Morte
ao cérebro
coma no coma os cacos da vida

Morte
à morte
por se julgar uma anarquista intemporal

Balada dos múltiplos

Estranho prazer de mudar
numa compulsão
sem pretexto algum
mãos deslizam
pela contra-capa
esvoaçam folhas espasmos
na incerteza
rascunha um espírito pranto
apressadamente
fundem-se setas numa só culpa
no lado de cá
o alvo sou eu.

segunda-feira

Quando chegar, avisem-me


Sou pessoa para pensar, em quase tudo, até no dia da morte. Não vou escolher o caixão, pois é preciso dar trabalho a alguém que realmente goste de mim ao ponto de lhe deixar a minha colecção de peúgas coloridas.
Flores artificiais é que nunca. Discursos emotivos, gritos de dor, serão sempre bem recebidos pois já não os ouvirei.
Por favor, escolham pessoas da mesma altura para pegar aqui no defunto, quero uma última caminhada bem equilibrada.
Não me virem cinza, há que dar de comer aos bichos.
Quanto à marcha fúnebre, soará imperiosamente: “I am the walrus ” dos Beatles. Sou o homem ovo. Na frigideira, hei-de estrelar o coração. E tenho pensado.

Flash gordo

Sou invejoso. Poderia usar eufemismos, mas onde me levariam? À luta entre palavras mais macias. Detesto embrulhos, é uma perda de tempo e papel. Por isso, todos os dias de manhã, ao olhar para a minha barriga proeminente, a cicatriz na zona lombar, a calvície prematura, digo sem complexos: invejo-te.

Sou provocador. Poderia usar eufemismos, mas onde me levariam? À luta entre palavras mais macias. Detesto embrulhos, é uma perda de tempo e papel. Por isso, todos os dias de manhã, ao olhar para a minha barriga proeminente, a cicatriz na zona lombar, a calvície prematura, peço sem complexos: provoca-me.

Sou narcisista?
Só depois da inveja e da provocação.

Sou frustrado?
Talvez, ainda não bati em ninguém.

Nem mimos?
Sim, já pintei a cara.

quarta-feira

The perfect family

The priest


"As fodas que não dei"- assim começa o mais recente livro do padre Vitorino. Homem dos quase trinta ofícios, Vino (gentileza da engomadeira vitalícia) escreveu esta obra maior nos intervalos do programa da manhã em que opina sobre a desgraça alheia. Ele, pelo contrário, é um ser de bem com a vida que Deus Nosso Senhor lhe reservou. Apesar da sua cultura literária não ultrapassar a descrição do Ramalhete de "Os Maias", Vino tem o dom de sempre se fazer ouvir com bastante devoção.

O céu está conquistado e o próximo passo para a fama virá com a criação do clube de fãs. Aceitam-se, desde já, as primeiras inscrições, sendo que todas as receitas revertem para a caixa das Madalenas quase reformadas.

Ao fã número um ser-lhe-á dada a possibilidade de rever o próximo livro que o Vino ultima na sua quinta, entre um licor e outro, cujo tema anda à volta das posições da criada sobre o ontem, hoje e amanhã. Para os mais ávidos de informação, o livro tem o lindo título poético : " Há um padre dentro de mim".

The sister of the priest

Ludovina, desde as partilhas, detesta o padre Vino, mas há mais...

Nunca perdoou o seu único irmão, por este não ter celebrado as missas dos seus cinco casamentos e cinco funerais dos respectivos cinco esposos.

Pousa sempre na mesinha de cabeceira, em breve descanso, a sua companhia nocturna ao lado de um maçudo livro que o querido filho dos seus pais em tempos lhe aconselhou.
Jamais o lera, nem mesmo quando esteve em repouso absoluto durante 25 dias. Foram tempos difíceis esses, mas compensadores para a sua eterna juventude.

Agora, Bina (cortesia do tenro jardineiro das quintas) é uma couve de bruxelas sempre fresca, mesmo que já fale sozinha; ao ver a fotografia dos seus 10 gatos malhados; coisas do género: meus amores, como estaremos daqui a uns anos?

E pensar que, para tal, bastou juntar 20 códigos de barras de um qualquer detergente para a loiça e colá-los numa revista social.

Vino´s nephew

Augusto Viriato nasceu amarelo, mas hoje é um lindo exemplar do macho minhoto, embora ao acordar não aprecie a sua beleza pois o cabelo tapa-lhe os olhos.

Interessado pelas causas fracturantes, seja lá o que isso significa, Auvi (cortesia do mecânico da família) é um acérrimo defensor da masturbação assistida.

Desde os tempos em que era levado, pela mão da engomadeira, para as sessões de catequese ministradas pelo tio, Auvi está sempre a mexer nas orelhas de mulheres católicas ou não.

Precoce como poucos, Augusto Viriato só duvidou da sua masculinidade pró-vaginal durante os breves instantes da colonoscopia a que foi sujeito.

A mãe galinha Ludovina mima-o com os mais de vinte possíveis padrastos. Ao olhar para a garagem, o Vianense anti-folclore agradece a Deus tanta fartura.

Jovem empresário de sucesso no ramo imobiliário, Auvi ainda tem tempo para gerir gratuitamente a fortuna do tio padre e escritor Vino , afinal os terços rezados em conjunto representam a dádiva compensadora da ausência paternal.

terça-feira

Da caixa de sapatos

Tiro não um
mas o meu cordão umbilical
de pó limpo com a alma
sorrio aos dentes caídos
e tapo saudades.

quinta-feira

Cardápio pessoal e transmissível

Não sou tecto
nem cigarro cravado à culpa

Não sou árvore
lamento respirar gente

Não sou mágoa
no presente em fios-lã

Não sou espelho
prestes a virar borbulha

Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu

Agrafo saudades à testa
sirvo bandeja de vísceras

Não sou dívida
por entre facturas expostas

Não sou canja
nem visto pele de galinha

Não sou linha
alguém me atropelou

Não sou pretexto
com sorte talvez apêndice

E eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu

Agrafo saudades à testa
sirvo bandeja de vísceras
entorno a sopa dos tristes
num compasso binário

e-u e-u

segunda-feira

Para lá

quatro minutos para as seis
e o céu passa-me ao lado
como sempre
um mal de amor
indigesto
em dois segundos
arrota nos pés
o azul que ainda persigo.

"Lágrimas de herdeiros, sorrisos sorrateiros"


O Sr. Abade Tomé morreu mal acabara de ler a sua biografia não autorizada. Talvez nem tivesse dado conta dos sobrinhos que lhe atribuíam. Malditas línguas de trapo. Resta o choro das carpideiras. Mais ou menos preservativo furado, certo é que a sacristia virou contentor de lenços biodegradáveis. O filho do padeiro, o irmão da criada, o neto da catequista Julinha, todos amigos do ambiente, desdenhavam à boca cheia das faltas de comparência. Cada um com seu ramo, cada um com sua carteira. Havia fé. Havia esperança que a morte não fosse anunciada num jornal de grande tiragem.

quarta-feira

“A verdade é como o azeite: vem sempre ao de cima”

Chovia, como nunca havia chovido, nas rugas da Dona Antónia. O carreiro chamado tristeza desembocava no coração feito estaleiro de obra. Lenço estampado a flores campestres. Lama. Sapato branco número 38. Lama. Havia parado de chover. O rio já ia longe. Havia parado de rezar.

segunda-feira

Carimbo e um lenço


Acertei, acertei-me – talvez um dia assim lamente. Há coisas que dizem adeus sem nunca o pronunciar. Planam no céu-da-boca como aves de rapina. Eis-me, eis-me caçador em tantos lugares comuns. Um, dois, dez tiros ao lado. Ah! Pois se há coisas que não dizem adeus quem lhes dera soprar um aceno.

sexta-feira

Carimbo e um sentido


Cheira a silêncio onde o coração se abriga. Cheira e nem sei quanto inspiro. Talvez uma fuga se assim forem os meus pés a tua solidão. Talvez trilho nesta corda de garganta. Amanhã, verei sem luz. Amanhã, esperam-me olhos famintos. Pois que seja, ria. Pois que abrace e caia pela sombra o nariz.


quinta-feira

Carimbo e um ponto final


Faço-me assim. Pobre de quem arrisca a contra-mão. As palavras travam e com elas ocorre o fatal embate. Contam-se os dedos aqui, ali. Tanta carne para tão pouco esqueleto de alma. Nem choro sol, nem raio fulmina os berlindes da infância. A melodia terá sido desfeita pela saudade e as covas aposentaram-se por tristeza crónica. Façam-me assim. Ricos serão em pingos. Na vossa cabeça penteando a lua quase eu, quase chuva.

quarta-feira

Made in Algures

Era uma vaca
resto de colecção
num musgo sem presépio

Era uma puta
com a boca toda
cuspia Nietzsche pelas esquinas

Tudo gira
tudo julga saltar
na mais fina corda-samba
em que se equilibra
o nosso olhar

Contrafeito
era o tempo
mas acabou pendurado
nos cornos da saudade
plastificada como boneca

Lenga seda

Tenham pó de mim
espalhem
pois se fui recado
amanhã darei nota
em rodapé
por bicho rogo-vos
tenham pó de mim.

terça-feira

Pára peito

A janela voou e pôs-se a contemplar. Pairou como se não tivesse mais amores-perfeitos para engolir. O vento soprara um desprezo tão carregado quanto a força que continha, afinal tomara suas as dores de corno relativo. Deveria saber, absoluta só a imaginação crivada nos dedos que afagam os vidros em estado bruto de perda. A janela abriu e eu vi-me a contemplar. As tripas, mais coração, mais tripas, o coração. Meu Deus, sou tão feio. Será tarde para vendar o amor? Cortina lhe seja feita a sangue.

sexta-feira

] [

Até ao fim, o amor é um intervalo, na solidão, feito a dois. Assim saiba esperar quem dele precisa como suporte básico de vida para sentir, boca a boca, o pulsar da saudade.
Até ao fim, hei-de foder e respirar pela acácia, pelo colibri e outras coisas tais que nem ousarei pincelar. Faltar-me-ão dedos gastos pela consumição alheia.
Até ao fim, atenderei lamentos e recordar-me-ei que de loucos e moucos todos temos uma quinta parte. Deus terá desfeito, num qualquer dia mais mal acordado, as outras.
Até ao fim, soarão trombetas e vulvas suicidas. Dos estilhaços, nem sol, nem pontos negros, apenas incertezas floreadas pelo choro.
Até ao fim, a porta continuará aberta. Entrem.









Por aqui?
Lembrem-se, até ao fim, o amor é um intervalo, na solidão, feito a dois. Assim saiba esperar quem dele precisa como suporte básico de vida para sentir, boca a boca, o pulsar da saudade. Agora, já que o paciente esvaiu-se em impaciência, desliguem as máquinas.

quarta-feira

Num terço de mim

Há um Deus
faz cócegas no pé
e rio da margem

Há um Deus
canta ao ouvido
vintém feito jukebox

Há um Deus
molde das rugas
carreiro para gotas de chuva


Tenho Deus
na unha encravada
penso
logo higiénico.

Canção quase deprimente

Peço à porta que não abra
Peço desculpa pela madrugada

E fico só
Tão só

Peço ao cigarro uma nuvem
Peço silêncio em disco riscado

E fico só
Tão só

Peço às alminhas que forniquem a minha
Peço perdão na prótese mamária

E fico só
Tão só

Onde estão os dentes outrora cariados?
Onde pára o semáforo?

Perguntas?
Mais perguntas eu peço.

segunda-feira

Holograma

Pus na garganta
Mão trémula
Cigarro cai desamparado
Nas maçãs podres
Tráfego de abelhas
Finjo não atropelar
Cabeça sem cepo
Vejo-o tal e qual
Cepo sem raiz
Finjo não reparar
Alguém ouvira:
- A genialidade resume-se a um bom assado de borrego.

sexta-feira

Canção do inferno

Vou contar-vos um pouco
Um pouco de mim
Nem sonham o quanto pequei
Para chegar aqui

Deus fora
Nada vivo

Deus fora
Dia quente no alpendre

Lábios queimados
No beijo ao leite-creme

Tudo é caramelizado

Sirva-se uma fábula

Sou alpinista
Escalo pilha de nomes

Adense-se o mistério

Sou transformista
Dêem-me lantejoulas

Há festa dos pés de barro
Em memória daqueles santos passados

Há orgias com manetas e pernetas
Pois são todos meus filhos

Sou costurado a cicatrizes
Foram partos difíceis.

quarta-feira

Caça prato

Comigo
tristeza tem sossego
junto ao corpo que pediu

Comigo
não suspira vida
por vida tão amarga

Comigo
falo em camadas
betão, ferro e um pouco de pele

Por nós
boca expulsa uma linha
tem cheiro a podre

Em nós
confunde-se desejo
feito de sombras

Venham os biombos

Assiste
deixa-me ser o teu pato bravo

Fixa
Decora-me com rodelas de laranja.

sexta-feira

Profissão de pé

Pregaram um retrato robot
Não fora Deus carteirista
Anunciaria resgate em promessas.

quarta-feira

Finito

Já tentei
Asfixiar magnólia num frasco de perfume
Só depois notei que cheirava a ciúme

Não serei como Maria
Vaso espiritual

Já tentei
Arquivar promessas no meu corpo
E por momentos vi uma mão engolida

Não serei como Maria
Torre de marfim

Já tentei
Não me tento mais.

quinta-feira

"Gato escaldado da água fria tem medo"

Romeu tinha quase tudo para ser feliz menos o rim esquerdo, o baço e a mão direita. Todos os dias, ao acordar com o que lhe restara, contemplava o calendário implorando um milagre: que nunca o 13 de Maio chegasse. A mãe, devota Mariana, não o censurava pois sabia quanto sofrera no instante em que o telecomando explodiu e levou a mão do seu Romeu mal este tentara mudar de canal. Passado um ano, a querida mãe havia de cumprir uma promessa. Afinal, pensara que felizmente a melhor letra vinha da esquerda. Assim, meteu-se ao caminho com o filho. Faltava apenas um quilómetro e de repente uma ambulância. Foi o que bastou para ficar sem rim, sem baço.

domingo

Uma vela a S. Valentim

Os ursos de trapo ameaçam devorar
as cócegas feitas pelas flores de plástico
que brotam de postais envelhecidos
pelo tempo refém das vontades
replicadas ao sabor dos beijos
cegos mas firmes convictos iluminados.

sexta-feira

MIOPIA

A minha alma tem um friso
Mal se vê
Mal me vejo.

quarta-feira

Figurado

Vejo pelas sombras
como os astros costuram a bainha dos dias

Lembro que meu cérebro é uma avenida sem toponímia
e desemboca na rotunda da estátua viva


.

terça-feira

Vaginação fértil

Prato com garfo espetado num coração de galo
um pénis erecto
Resto de arroz cabidela achado no soalho
um pénis erecto
Colar a desprender pérolas junto à televisão
um pénis erecto
Meia branca com manchas amarelas no sofá
um pénis erecto
Teia de aranha a tapar o nariz do retrato
um pénis erecto
Relógio a depenar horas ao som do Treze de Maio
um pénis obviamente erecto
Última folha da rosa mergulhada na xícara
e um balde de plasticina cor musgo.

quinta-feira

Incisão

Leve bisturi
voa alto
golpeia nuvens
e eis que chovem mãos
quedam-se bem fundo nas covas
das rugas não falaremos
a saudade há-de cicatrizá-las.

terça-feira

Executivo

Deus acordou
já era tempo
pensou
talvez as pilhas estivessem gastas
para melhor enxergar o dia
limpou remelas
espremeu duas borbulhas
sujou tampa da sanita
comeu cereais com leite meio gordo
vestiu uns calções de lycra
foi correr
estúpido canídeo
sempre a confundi-lo
perna esquerda não é uma jante especial
esperem lá
telemóvel
“amanhã, Tóquio”
céus
abram alas ao jet-lag.

segunda-feira

Fornicação mor

Na parede forrada a salmos
velavam todos os santos
mal cobriam seus pés

No fundo
eunucos davam à língua

Era rosário de pedras vulcânicas
e umas massagens na próstata

Era implante em segunda mão
e meio seio contrafeito

Era cilício deslocado
e uns testículos rentes ao chão

Era pilha de livros
e tantas ladainhas impronunciáveis

Era fonte luminosa
e outra vulva como menino de bruxelas

Era âncora dispersa
e meras peles descosidas

Ao fundo
eunucos davam à língua

Na parede forrada a salmos
constipavam todos os santos
e mais algum.

sexta-feira

ONTEM

Pensei
todas as manhãs penso
atropelar a mulher de chinelos plásticos mais avental pijama
uma pena ser tão simpática
e esboçar sorriso apenas com seus dentes frontais.

Sacudi caspa do casaco
fiz contas de somar com os dedos na secretária
multipliquei dinheiro alheio já anteriormente multiplicado a suor.

Bocejei
nem sei bem a razão
mas quem disse que era preciso motivo?

Fiz um poema enviesado
seja lá isso o que for
prostra-se quase sempre ao amor.

Vi um filme
postal de outros filmes
ensurdeci com som do piano inexistente.

Ramirezzi sem nome virou peixe de esgoto
paz à sua barbatana.

Chorei penas
depois desisti
recordei uma minha tia:
- A masturbação é um mal menor.

quinta-feira

Instalação

Sobre a mesa
nódoa de toalha
bordado chinês
menina nua atira
sapato direito vermelho
jaz no aquário bóia
e pronto
batam palmas
se quiserem
sigam
por favor
retirem a mesa
vistam menina
um segundo
e pronto
entrem
se quiserem
por favor
sobre a mesa
nódoa de toalha
bordado chinês
menina nua atira
sapato direito vermelho
jaz no aquário bóia
batam palmas
se quiserem
sigam

quarta-feira

Numa Quarta-feira

Carpideira embuchou sorrisos cariados
Fritou-se sonho em lençóis de linho
Rolou olho míope na chapa-zinco
Diagnóstico revelado foi lua preguiçosa
Houve tempo para o suor esfriar
Lágrima vazou ao pé-coxinho
Princesa seropositiva negou sua condição
Fígado licitou copo de água baço
Berma não esperou pelo táxi
Alguém fez um aborto à poesia
Casaco virou casaca do avesso
Ámen esfomeado devorou hóstia
Depilaram-se promessas com cera de Fátima

terça-feira

PENSAMENTO

Resolvi pensar
Tranquei-me numa casca de noz
Pedi emprestado quarto da lua
Esmaguei ilusão com dois ramos de salsa
Mandei passear lençol pela avenida
Entretanto, já havia pensado

segunda-feira

Pela cortiça adentro

Menina roça coxas na casca
Pardal troca olhos e esconde bico
Mesmo despido é natureza
Abaixo plástico
Viva o método das temperaturas
Abade roça pança na casca
Pardal sofre diarreia de penas
Mesmo careca é natureza
Abaixo plástico
Viva mais um filho da catequese
Beberá aloé vera
Comerá alfazema
E ainda terá pulmão para umas barbas de milho
Tocará concertina numa desgarrada com o pardal
Fará cócegas à lua
Tudo isto na sombra de um sobreiro.

sexta-feira

Se sou

Sou capaz de borrar o pôr-do-sol
Sou capaz

A aprendizagem?
Fi-la mastigando palavras
O bolo?
Qualquer história enviesada

É freira com seu ananás num frenético acto penitencial
Ai Jesus e os bicos de papagaio

É viúva mais seu choro compulsivo pois carteiro não passara
Ai Jesus e a maldita mudança do tempo

Hoje, vesti preto
Julguei-me capaz.

quinta-feira

Na reforma

Sou tal e qual
Bonifrate revestido a pele
Desfaço gestos sincopados

Corpo de linhas soltas
Uma mão prendeu-se ao peito
Um pé rasteja no céu

Boca cosida a ponto cruz
Psoríase em retalhos bombazina

Estafeta de Deus
Ora vem com selo
Ora se é capaz

Dispenso palmas
Velhas rugosas
Puxam lustro a visigodos

Dispenso-me
Pois lamento
Já não sou um homem maquinal.

quarta-feira

Abat jour

Carrego dilema. Num apelo premente à fantasia, forro-me a pano rendilhado de cor viva que tal vida prostrada não iluminará. Seja por remorso, ou por presença, interruptor prolonga namoro à faísca assim como os dedos deslizam no peito marcado pela saudade. Com cortina entreaberta, com tecto feito sombra, a noite há-de aparecer. Trará companhia? A lua, já não arrisca palpites, cansou-se de esperar pela maré-cheia. O fumo distrai-se na sua dança sem par e esbarra nos rostos colados ao passado em teias de aranha ávidas de uma qualquer tortura. O cheiro é sentido. Ainda cheira a ontem. Estou perante mim ou não estarei perante alguém? Meras cogitações diluem-se no lirismo bacoco da almofada absorta. Sim! Acusa a recusa em depositar sonhos e eu já nem sei quem me amparará.

terça-feira

Photoshop

Estou no parapeito, com vista para o pomar, naquele pedaço de tempo que é um tempo só para mim. Mãos trémulas lançam as últimas beatas de cigarro saudade e fertilizante do meu cortex. Por acaso, quis brisa soprar uns prantos. A Cerejeira esquelética sentiu, tomou-se de dores, com suas folhas a estremecerem quais espasmos de medo. O Castanheiro calvo, robusto companheiro de sombra, amparou-a não fosse seu choro contagiar canteiro das rosas intrusas. Lá longe, quase na Lua, sorriam com desgosto alheio as laranjas lilases. Tão malvadas mas tão desejadas, pois se uns preferem maçãs há quem simplesmente mate fome e desejo com uma impressão a cores esbatida. Numa montagem de mágoa, manipulação é acto reflectido. Mil vezes; sem conta para prestar, nem tecto para abrigar; coração fecha-se como janela que estou a fechar. Amanhã, mais parapeito, menos vista, mais cigarro, menos beatas, mais pomar, menos fruta. Talvez, quem sabe, rosas pretas às bolinhas amarelas.

sexta-feira

Infinidade

Sete gomos de céu
matam desejo dos outros
nuns lábios tão imperfeitos
quis saudade apartar
em minguantes suspiros
sou expelido
assim como neblina
pairo augusto
assim como vento
morre algures
a tristeza que me define

quinta-feira

TERIA SIDO MAIS FÁCIL

Escrevo uma frase e apago.
Escrevo uma frase e apago
Escrevo uma frase e apag
Escrevo uma frase e apa
Escrevo uma frase e ap
Escrevo uma frase e a
Escrevo uma frase e
Escrevo uma frase
Escrevo uma fras
Escrevo uma fra
Escrevo uma fr
Escrevo uma f
Escrevo uma
Escrevo um
Escrevo u
Escrevo
Escrev
Escre
Escr
[Esc]

quarta-feira

OBRA SOBRINHA

Meus raros
Não fiquem abismados
É verdade o que vos digo
Ou um fardo feito saco de pancada

Meus raros
Não fiquem chorosos
Intróito velado
Reclama versos sentidos

Posto isto
Obra sobrinha escrita
Só possível por ausência da prima
Essa triste apontada
Deixou-se quedar em bronze
Nos banhos de luar
Honra lhe seja feita
Escolheu o quarto crescente
Para compensar crónica miopia

Ah meus raros que de tão raros os julgo familiares
Não fiquem abismados
Nem tampouco chorosos
A sobrinha furou orelhas
Já pendura saudades
E até dizem ser feliz pelas suas varizes

terça-feira

HAJA PACIÊNCIA

Há quem tenha irmãos em frascos
Eu tenho-os pendurados

Há quem contribua para o peditório
Eu cuspo na sopa dos tristes

Há quem cambaleie até à anca
Eu nem ouso usar tacão alto

Há quem faça cartas de amor
Eu já lambi muitos envelopes

Há tanto tempo, que se faz tarde, para me calar.

sexta-feira

MANIFESTO QUALQUER COISA

O tempo mudou
Tomei-lhe as dores
Por não saber pintar sonhos
Declarei-me poeta
Quis crer num qualquer “foram felizes até à placa dentária”
Bastou
Andor que a Santa lavou-se em lágrimas
De espirro em espirro
Flores do adro constiparam
O tempo mudou
Agora, faço ondas ao cartão magnético
Subtil forma de estrabismo colectivo
Pois, pois, pois
Pois somos uma migalha dessa grande brioche que é o mundo
Bem-haja
Aquele capaz de assoar nariz ao umbigo
Vá para escroto que o ampare
Julgam-me desconexo?
Meus caros, não escrevo para mim
Faço-o por mim e por todos quanto abrigo
Na verdade, sou pelos indigentes
Até comem papas dos meus neurónios
Mas calma
Hoje, sou inatingível
Amanhã, cortar-me-ão a meta
Allez, allez
Sardinha já pinga
Na broa da minha tia

quinta-feira

Amor, Deus e Matemática pelo retrovisor

Amor é vidro cravado no caule de uma flor que brota no esgoto da praça varrida pelo pombo prestes a virar canja.
Deus fala muitas línguas, eu falo somente as que consigo descodificar na alma.
Somo desastres e por fim é amanhã.

Ontem à noite

Sentado na sanita
Li que o amor tem medidas
Quantas se podem fixar
Em post-it ou íman
No frigorífico
Na marquise
Juras pelo corpo inteiro
Aluguer da lua por um par de beijos
Faz sentido
Ainda que o horóscopo semanal não faça
Pensei qual será o motivo
Desencontro de expectativas?
Estaria já na minha quinta teoria
Eis que ouvi a razão do estômago
Fui jantar
Sopa da melhor couve empacotada
Vibratos de carbono
Mais cheiro a carne
E a companhia?
Discreta, confidente
Como é óptima a parede vermelha da sala de jantar.

terça-feira

À mesa

Vou soprar as migalhas
[Faz anos que a gata cinzenta, que se chamava Cinzenta, foi atropelada por uma bengala]

Vou tombar garrafa de água
[Talvez construa uma cascata, entre mesa e chão, com meia dúzia de virgens suicidas]

Intervalo
[Revela decisão e caminho embora não saia da rotunda]

Ah vaca
Tão vaquinha
Amo-te assim
Santa
Minha santinha
Sem disfarces
Nem bigode

Intervalinho
[Estes delírios são rasteiros, ainda jazem na recusa do cabrão abatinado em fazer-me engolir a hóstia]

Ui! Que fome

Conto as migalhas
[Há quem desfaça carneiros com dedos apontados ao tecto]

Espalmo garrafa de água
[E a cerveja acabou, na certeza porém que a noite será uma urina]

Fim
[Nem sempre se foge às convenções]