segunda-feira

"Lágrimas de herdeiros, sorrisos sorrateiros"


O Sr. Abade Tomé morreu mal acabara de ler a sua biografia não autorizada. Talvez nem tivesse dado conta dos sobrinhos que lhe atribuíam. Malditas línguas de trapo. Resta o choro das carpideiras. Mais ou menos preservativo furado, certo é que a sacristia virou contentor de lenços biodegradáveis. O filho do padeiro, o irmão da criada, o neto da catequista Julinha, todos amigos do ambiente, desdenhavam à boca cheia das faltas de comparência. Cada um com seu ramo, cada um com sua carteira. Havia fé. Havia esperança que a morte não fosse anunciada num jornal de grande tiragem.

quarta-feira

“A verdade é como o azeite: vem sempre ao de cima”

Chovia, como nunca havia chovido, nas rugas da Dona Antónia. O carreiro chamado tristeza desembocava no coração feito estaleiro de obra. Lenço estampado a flores campestres. Lama. Sapato branco número 38. Lama. Havia parado de chover. O rio já ia longe. Havia parado de rezar.

segunda-feira

Carimbo e um lenço


Acertei, acertei-me – talvez um dia assim lamente. Há coisas que dizem adeus sem nunca o pronunciar. Planam no céu-da-boca como aves de rapina. Eis-me, eis-me caçador em tantos lugares comuns. Um, dois, dez tiros ao lado. Ah! Pois se há coisas que não dizem adeus quem lhes dera soprar um aceno.

sexta-feira

Carimbo e um sentido


Cheira a silêncio onde o coração se abriga. Cheira e nem sei quanto inspiro. Talvez uma fuga se assim forem os meus pés a tua solidão. Talvez trilho nesta corda de garganta. Amanhã, verei sem luz. Amanhã, esperam-me olhos famintos. Pois que seja, ria. Pois que abrace e caia pela sombra o nariz.


quinta-feira

Carimbo e um ponto final


Faço-me assim. Pobre de quem arrisca a contra-mão. As palavras travam e com elas ocorre o fatal embate. Contam-se os dedos aqui, ali. Tanta carne para tão pouco esqueleto de alma. Nem choro sol, nem raio fulmina os berlindes da infância. A melodia terá sido desfeita pela saudade e as covas aposentaram-se por tristeza crónica. Façam-me assim. Ricos serão em pingos. Na vossa cabeça penteando a lua quase eu, quase chuva.

quarta-feira

Made in Algures

Era uma vaca
resto de colecção
num musgo sem presépio

Era uma puta
com a boca toda
cuspia Nietzsche pelas esquinas

Tudo gira
tudo julga saltar
na mais fina corda-samba
em que se equilibra
o nosso olhar

Contrafeito
era o tempo
mas acabou pendurado
nos cornos da saudade
plastificada como boneca