terça-feira

Amanteigado

O poeta comeu todos os versos
esperou obeso a chegada do enfarte.

O cravo bem temperado



Sentado
via-se a perfumar gotas de chuva
Bach ao fundo
parecia falar-lhe
um prelúdio
mexia colher na borra do café
nove horas e meia
amargo mas perfeito
deixou-se cair.


já não mora aqui
quem por mim viveu

o amor
em coração despejado
deixa-me um buraco

respiro pelos azulejos da pele
coso as nossas bocas a palavras

o amor
com seu fim cravado na memória
deixou-me num buraco

arranho
arranho
arranho manhãs.
o poema vivo
dentro do poema neutro
o poema desbotou
e assim se coloriu um coração a palavras.

segunda-feira

Quem me desperta?

Deitei-me comigo
não resisti
à curva desenhada pelo sonho

Acordei contigo
não resisti
à manhã

O meu nome é Pecado

Vivo de pedaços
pedaços de amor
que a minha vida tira a outras

Com tristeza profunda
cavo até ao fundo
do fundo das coisas

E o meu nome é Pecado
o teu já nem sei.

Sou

Sou paralelo mal calçado
na hora do adeus
cavo flores
colho nadas
para desenhar mais que uma tristeza

Sou gamela mal segura
no gosto do pecado
trago verdades
simplifico teoremas
para retalhar mais que um corpo

Sou isto
sou tanto menos

Sou assim
como quem se afasta

Sou vocábulo mal dirigido
na linha da palavra
acentuo ilusões
reclamo ironias
para condensar mais que uma fuga

Sou realidade mal encarada
na retina do passado
lambo pratos
penteio perucas
para emagrecer mais que um fio

Sou isso
sou tanto mais

Sou assim…
para quem se afasta.

sexta-feira

Prefácio

Na leitura do amor como na vida
há sempre uma rua farta de pressas
olhares que se desviam certeiros
uma esquina mijada por lamentos
enganos que se prendem ao coração
uma conversa desdentada sem fim

A sombra quando nasce
nasce para todos
no dia que se funde
atrás de nós

Toquei palavras escusadas
suei com elas

Senti o que sente o corpo
quando não tem mais nada
mais nada
mais nada para ler.

quinta-feira

Assim

Fiz-me num poema
diluído na madrugada
qual sonho em câmara lenta

Fiz-me num poema
com tempo impiedoso
selado pelo beijo da morfina

Fiz-me num poema
embriagado na memória
apago vidas sem rascunho

Fiz-me num poema
reflexo da calçada
exausto no afagar de esquinas

Fiz-me num poema
por acabar

Num poema

Ilustro sonhos
perco sentidos na ideia
mastigo criatividade
coloco-me em causa
mas nem sempre

Apunhalo certezas
dou primazia à ironia
estilhaço convenções
ponho-me a mim
e nem sempre

Cuspo manhãs
sou sem ter rido
vazo silêncios
copio-me a custo
quase sempre

Intuo sensações
faço vales de almas
encaixo tiranias
permito-me a isso

Sempre

rouco
desbotado
canso a palavra
apenas a palavra.

sexta-feira

Siano

nunca trepei a minha árvore
tenho medo
não de quebrar um ou outro ramo
mas sentir o passado como paliativo
que eu moribundo recuso aceitar.

quarta-feira

tenho o vício das manhãs sem estore
um meio corpo
além, Bob Dylan
outro meio por ouvir

sei bem quanto divido
sabe bem saber-me pela fronteira

não acredito em heróis de banda gástrica
acredito no apocalipse dos collants

tudo fumo
até o coração varro
como uma beata

é vício
é vida
logo ironia.

sexta-feira

redundâncias

exercício prático do polegar direito

aquela laranja
lembra o solo da alma
cinza

formulação teórica de qualquer dedo

plana
é a alma
que se deixa planar

quinta-feira

preferi a fuga à saudade
neste ponto irredutível
discordo de todos quanto discorrem sobre o tempo
pois aos ventos que parto jamais lhes direi
não sou capaz
não sou capaz de errar a teu lado
faço-me um favor
tropeço no olhar
atiro contra a dor
que nos há-de abraçar.

quarta-feira

(in)certeza

sabe ou não quer sentir o coração quando chove?
haverá forma de responder sem tornar a inquirir?
esqueça
hoje, o sol funde-nos as artérias
vazemos mesmo aqui
a retórica.

segunda-feira

A bíblia

Se calhar
a minha cabeça é um vaso
se calhar coberto de pétalas

Se calhar
quebrarei ao teu sorriso
se calhar amarelo como nunca

Se calhar
procurarás um beijo
se calhar mais e mais

Quero que saibas:
a vesícula não deu sinal
o horóscopo bate certo
a gata tem comida até amanhã
o aquecedor funciona

Se calhar
foderemos
senão cada um masturbar-se-á com o livro que melhor nos define.

quinta-feira

repetirei, se for preciso

não há palavras
que nos comovam
tanto como o passado
rebobino-me
primeiro dente?
já nem tenho
primeiro choro?
já nem oiço
primeiro beijo?
já nem sinto
basta
pronuncio a derradeira certeza:
o tempo é uma espinha no rosto.