sexta-feira

cobra

dizem que a felicidade vem de dentro
dando uso às línguas
dizem tantas coisas
graças a deus
não são mudos

confirmo
tenho uns intestinos muito felizes
graças a deus
sou pelas fibras
é verdade
tenho também uma mão direita que nenhum tanatório reduzirá a cinza.

terça-feira

reunião de condomínio

a culpa é da maldita infiltração do senhor coração por cima - vocifera o senhor coração na boca.
o senhor coração ao lado de que lado está? - provoca o senhor coração de manteiga.
só caíram, caíram uns, caíram uns azulejos - lamenta o senhor coração maquinal.
haja fé e um prato de canja - remata o senhor coração galinha.

sábado

a purga

poesia?
é a minha cela

dedos?
os meus companheiros

cortem-me os dedos mas nunca as grades

tirem-me a língua mas nunca o soar das conversas banais

nelas encontro gente, promessas e solidão

eu?
já sou carne podre

espero abutres
rasgarão pedaços, amor
como quem esventra uns versos só pelo prazer
o prazer de julgar.

segunda-feira

Perdido a três tempos

Tenho pena
e um punhal

punhal com pena
ou pena num punhal

amor... fode-me o coração!
este mordido entre lábios

amor, fodes-me o coração?

amor fodeu-me o coração.
noutro colaremos as penas

sabe a lógica
quiçá manobra de semântica
todo e qualquer sentimento que se deixa cortar

pelas artérias
reconheço uma vida
ainda em construção.

quarta-feira

a inspiração da anorexia

alerta
temos vida
aqui
é só drenar o coração
pasme-se
temos gente

vales de felicidade
já os terão descontado?

tanto osso
afinal quanto pesa a poesia?

aqui
nada

nada comigo outra lua no amanhã que expira.

segunda-feira

Em memória da andorinha que partiu o bico

Lamento
mas não se foge da primavera

antes um amor ou coisa alguma para esquecer
de qualquer maneira
antes a chuva à perda

obrigado
irei plantar as saudades que arrancaste das nuvens.

sexta-feira

A influência de Deus

Como pão ázimo
restrinjo-me à falácia do amor
por tua tão grande culpa
inspiro no peito que abri.

quinta-feira

Vã glória de acordar

Não gosto de rosas
cheiram a milagres

não gosto de milagres
sobrevivem às juras

não gosto de juras
acredite quem quiser

estas palavras
quase as rompi
num momento de lucidez
a negação é o último dos meus pecados.

quarta-feira

Ginástica

o amor
por vezes calça
um losango da razão
abrindo seus lábios
até aos pés.

terça-feira

Musgo

bem vivo
está no meu coração
rasteiro
lança-se às artérias
objectivo: dedos, esses apêndices da alma.

segunda-feira

A vida da vagina- Ínfima parte

---Homenagem do pardal---

leva-lhe pelo bico um pedaço de céu

---Homenagem do vento---

serpenteia a letra [e] já órfã

---Homenagem do pintor---

azul ciano sobre branco pérola

---Homenagem do sobrinho---

« terna saudade»

Vagina não fala
logo não agradece

Ingrata


In "Cemitério nus prazeres"

sexta-feira

De que adianta uma margem se o rio já não me corre?

pego nos dedos
o junco que fui
entre palavras
meu corpo velará.

quinta-feira

Essa nuvem carrega a boca do tempo

Quem dera ter sentido
mas insisto
deixar-me engolir
à boleia de um balão
penteio árvores com os cordões dos sapatos
resumo histórias nos olhos das aves que migram para sul.

quarta-feira

Intervalo

As mãos têm luas
As mãos têm folhas
E o que verão?
O que verão?
Na tua ausência

Os olhos têm barcos
Os olhos têm peixes
E o que dirão?
O que dirão?
Na nossa ausência

[Um dia]
Os olhos cavaram saudades

[Noutro dia]
Hei-de encontrar

[Um dia]
Os olhos escavaram, amor

[Noutro dia]
Hei-de encontrar-te

terça-feira

Epicentro

Este é o ponto.
Único
como se as palavras tivessem sido esculpidas
num coração abrigado por saudades
onde a tristeza esboçará caminho
indecisa
por agora
habita-me
enquanto defino tempo
à nona tentativa
tempo = concerto sem expressão
resta um pouco de mim
entre camadas
não volto às voltas que nos trouxeram aqui

sábado

silêncio

conversa pintada a quatro mãos.

terça-feira

ainda assim

recolho pedaços de uma barbie
ficava-lhe tão bem a burka.

sábado

a 90 ºC

era capaz de torcer o coração

quarta-feira

Morte fértil

Pobre
dizem que és perneta
tens herpes nos lábios

Puta
não passas recibo
fazes cortes, sem medida, no destino

Porca
cheiras a ontem
nessa derme lavada pelo sol

Pífia
esvai-te pelas palavras
os dedos mal esperam
oh meu amor
a nossa vez
joguemos flores ao adeus
e um pouco de arroz.
Havia lá
no cimo
um corpo abandonado
quisera ter penas
mas nunca coração

Deixou-se pendurar
nas nuvens
em silêncio
pelo destino
choveu amor

Havia lá
no fundo
uma vontade
de sonhar.

domingo

Interrupção voluntária de versos

Dez anos passaram
o frigorífico está como sempre esteve
cheio de ossos do sacrifício
pela vida
eu continuo predador
hoje, insónias e chá verde
resta a lua preguiçosa
uma boca de saudades
conto quatro, seis, nove relógios
trago a ironia
essa que me pariu para vos abortar poesia

quinta-feira

Fibra

Minha corda
tua corda
a cabeça na forqueta

Minha fada
tua fada
a barriga na gaveta

Fechei história
venham os cereais.

quarta-feira

Sucessão

Ao fim de quatro abortos
já o negócio da filha havia dado prejuízo
virou-se para a sobrinha
e logo choveram ananases pelo cu
foi ontem
dizem
que eu ainda não o sonhei.

Photoverso

A minha alma é quase lua
nem sempre se deixa retratar
[mas hoje]
pousa para mim
[hoje]
eu pouso aqui.

sexta-feira

falem

falem da tristeza
com as mãos

ouvir-vos-ei
até remar saudades

falem desse rio
onde começa
onde se perde
nas bocas.

segunda-feira

. a .

Ponto a ponto
o coração
descoseu-se em vida

quinta-feira

Primeira depressão

de unhas postiças
seios por medida
lentes do dia
balança na balança
vomita para os pés
eis a lágrima
sem borbulha
amanhã, queira Deus
crescerá um coração
ao lado da rodela de ananás.

quarta-feira

Dizem

dizem que há tanta vida
às tantas recuso enumerar
a desistência
por si só
levo ao colo do silêncio.

terça-feira

voltas

um mapa
as minhas costas
uns sinais
ainda que nunca alcance
a magreza aos olhos regressa
nesse momento
preciso de luz
para adormecer
na memória.

sexta-feira

As mãos

Penduradas
no tecto
hão-de cair
como saudades
ao jantar
grão
chispe
muito chispe.

quinta-feira

óculos

desfocados
no chão
na vida

são coro manhoso para escaravelhos
são pala de uma noite sem afectos

não se antevê a queda da lágrima
não rebate o filtro sujo vulgo alma

suados
no chão
na vida.

quarta-feira

Kamikaze ao lado

acabará
acaba na terra
acabou o poema
terra

terça-feira

XX

Sou fachada de veludo
choro atrás do muro

Sou pó-de-arroz nos dedos
recolho cacos pelo chão

Sou novela no fim
colo episódios à memória

Sou faca prestes a redimir
marquei encontro com um peito.

segunda-feira

harakiri

este é o punhal
este seria um poema

sexta-feira

Na horizontal

Um rapaz quer ser velho
espreme borbulha com fervor
tristeza
foi-se tragar suco da vida

Uma mulher quer ser puta
implora toques de cama quente
pureza
vai lá ficar marcada

Querem:
a piscina vazia para nela dormir?
um rapaz que se vista de puta?
os cães a ladrar no telhado?
um velho que beba a mulher?

Sonhem
entretanto
vou sorrir com todos os dentes
foder com todos os dentes

Se puder
no fim
mesmo no fim
contar-vos-ei uma história

quarta-feira

quase social

Sol rasga a fronha
em cama de papelão
pombo esburaca dente
é hora
hora de reflectir rugas pelo chafariz
com passo coxo
rato no estômago
esperam-se carros
contam-se esperanças
é hora
hora de matar o bicho
seja ele quem for
naquela passadeira
verde para peão
ambulância em fuga
sinal directo para o céu
mais uma cama vaga.

terça-feira

Procissão ao centésimo

Fuga do adro

beata varrida

simulacro no altar

andor não espera

santa vai a pé

paralelos viram nuvens

nuvens abrem passagem

para o elevador da fé.

segunda-feira

Perneta

Se amor é verniz
deixa apagar com acetona mais pura

Se amor é bolacha
deixa embeber na tigela de sonhos

Faz cócegas
Faz migalhas

Deixa rasto

Se amor fosse sem antes ter vindo
era lírica tentativa de fuga

quinta-feira

Detalhes

Os lírios murcham
na água turva

Os dentes cerram
palavras meigas

Os livros enterram
sonhos agitados

Tal e qual
Os meus dias são iguais.

As coxas abrem
janelas direitas

As sombras sentem
outras presenças

As telas reflectem
caras pisadas

E que tal?
Pois, os meus dias são banais.

Acerca do perímetro

Minha vida é

Garfo espetado
Pilha de miolos a gingar
E como-me


Minha vida é

Dentadura ouro
Fuga ao copo lágrima
E envelheço-me

Minha vida é

Mortalha gasta
Terra da cogitação seminal
E ejaculo-me

Minha vida é

π

Mentalizo-me

não saberei escrever bonito
ao ponto
o que é da alma
em cruz
sai rugoso
talvez com defeito
em verdade
julgo evidências
faço prova
sentencio
não sei escrever bonito
em boa verdade
julgo minudências
dou-me à prova
prostrado
temerei escrever bonito
pelas rusgas da saudade
envolver amor em papel celofane
assim acentuo
assim será
queira Deus ter versos para queimar
e eu possa arder em belas palavras.

quarta-feira

41

Deveria ser mais rodapé
intuir pelas solas
pensamentos

Este que vos trago já o havia pisado
Este que vos trago já o vi pisado.

terça-feira

Revisitação

Eis a mesa farta de bordado chinês

ao centro

eis o loiro anoréxico

da cabeça aos pés

entorna

chá de hipericão

há-de vomitar

um meu irmão

há-de entregar

cordeiro

e eis que lógico

cozinhado vira livro

marinado a fé.

quarta-feira

de seus nomes

Epitáfio José
tinha uma alcunha
objecto perdido
nos dias de busca
colocava o coração ao meio
até sucumbir à amnésia.

Epitáfio José Júnior
ainda hoje se compõe
herdeiro de um intervalo
assina com meio coração
e em homenagem respira
até sucumbir à palavra.

arqueologia suspensa

nesta bala comum
perfuro céu
mapa de pele trilhado a lamentos

nesta bala comum
estilhaço céu
como um amor morto ao pé-coxinho

nesta bala comum
em galochas
escavemos saudades por entre as nuvens.

quinta-feira

geometria para além de quaisquer bustos

verdade que não tolhemos
verdade

escultura policromática de menina desarmada
escultura da verdade

os olhos serão meus
a alma tua

em que pedra cinzelaste as palavras no silêncio?
faça-se uma exposição.

quarta-feira

até ser dia

tenho o coração na gaveta
ladeado por papéis amarrotados
cada um com seu traço a desgosto


aparentemente só

na verdade
a lua está de visita
e encostou-se ao parapeito
para mais uma conversa trivial

fala-se de Deus
na sua ausência

crava-se um cigarro

fala-se do tempo
que há-de chover

no amor?
quase não se toca
ainda assim, a lua sentenciou-me:
- Ou está de cama, ou está de luto.

terça-feira

por este rosto abaixo

cerro meu mundo com os dentes

ainda oiço
livrai-nos do mal
como se ouvisse
culpai-nos do mal

não que o queira
simplesmente presente
corpo é apenas roupeiro
onde oscilam cruzetas despidas

cerro meu mundo com os dentes

se a dor for embora
quem afagará as rugas?

quinta-feira

sem efeito

colei um lembrete nas nuvens:

tomara não chova
tomara.

terça-feira

pelo entulho, um prefácio

cascas de banana com riscos
esferográfica azul-marinho
espinhas de solha envoltas num jornal
dentadura postiça lavada em lágrimas
ferro fundido às rodelas
carreiro para formigas
meia perna de pau
cuco a rasar pagela
tic-tac, tic-tac, tic-tac
aqui há vida
pilha
pode não ser tua
nem minha
mas é espelho gasto de outras
pilha
vê se me vês
para contares quantas palavras arderam
entre elas, entre elas, entre elas
serei eu e muitos mais.

segunda-feira

outro lado

rascunho de rio
fi-lo
em prata
navega meu corpo
esbarra nos juncos
pelo rascunho da margem
fi-la
a pensar em ti.