segunda-feira

Teorias

Folhas secas e uma laranja podre
Foi tudo quanto restara
Desde que a lua pisou o sol
Estaria com pressa?
Atrasada para o emprego?
Tropeçaria numa nuvem menos calçada?
Certo, certo só Galileu
E nos meus ouvidos o choro do sol ao pé-coxinho.

sexta-feira

Fluxos migratórios

A Marília após duas operações às maçãs do rosto vira completa
O Manuel descose o fecho éclair ao carregar um saco de fermento
A Rosa trabalha na ménage mas diz que não tem mais líquidos
E eis que sopra uma rabanada de vento
As andorinhas da vivenda Sãozita planam pela última vez.

terça-feira

Bestial criação

Cria uma pia feita a crias de gente

Cria órfão peixe-gato

Tu que querias recriar tal história do príncipe estigmatizado

Cria uma cria e fornica com ela

Cria-te todos os dias em papel

Sê Crente

Acha

Nódoa

Rosa

Sabonete

Borracha

Lousa.

segunda-feira

Espanquei a palavra

Fi-la engolir uns quantos raminhos de salsa
Não fosse regurgitar o suco gástrico do amor
Por amor a Deus
Terá ficado imune ao altar
Pois lembrem-se
Recusas de puta não chegam ao céu
E em verdade
Em boa verdade vos marro
Há sempre uma palavra do dia seguinte
Amanhã

sexta-feira

Primavera/Verão

Tendencialmente um coração fraqueja mais que um rim
Direito ou esquerdo?
Pouco importa

Tendencialmente alguém questiona se o amor acabou
Cedo ou tarde?
Pouco importa

Tendencialmente as palavras importam sentidos a outras
Canibais ou não?
Que se comam antes com todos os dentes disponíveis

Alguém vandalizou o papel de parede do quarto
A ladear, meu Jesus, deixou o aviso:
“Para a próxima, segue a moda!”

Esqueci
tendencialmente de moreno passou a loiro.

quinta-feira

Rosto de areia

Adoro sorrisos amarelos
pisco-me o olho
sorrio
da minha dentição nem falarei
pois insistir de boca cheia é feio

Não esperem um coração aberto
para isso há cirurgiões
para esperas somam-se filas
e faz vento desde que foste madrugada no meu polegar

Espasmos
espasmos meus
Deus acode
tão fácil invocar-te
até esqueço dúvidas

Na bóia ou sapato
sonho com a cova no mar
virar alga
entranhar-me num búzio
ir de vela
ir

quarta-feira

Batam palmas

Mas não aqui
o artista bateu com os cornos no céu
deverá, portanto, respeitar-se um minuto de aguaceiros.

terça-feira

Registo ameno de uma foda ode

Morte
ao barro
sobra-nos em mãos o que temos em plástico

Morte
aos apêndices
em lista de espera pela cirurgia da palavra

Morte
à viúva
mais suas lágrimas aos calcanhares dos santos

Morte
às Acácias
quisera nem cheirar sombra de tal nome

Morte
ao cérebro
coma no coma os cacos da vida

Morte
à morte
por se julgar uma anarquista intemporal

Balada dos múltiplos

Estranho prazer de mudar
numa compulsão
sem pretexto algum
mãos deslizam
pela contra-capa
esvoaçam folhas espasmos
na incerteza
rascunha um espírito pranto
apressadamente
fundem-se setas numa só culpa
no lado de cá
o alvo sou eu.

segunda-feira

Quando chegar, avisem-me


Sou pessoa para pensar, em quase tudo, até no dia da morte. Não vou escolher o caixão, pois é preciso dar trabalho a alguém que realmente goste de mim ao ponto de lhe deixar a minha colecção de peúgas coloridas.
Flores artificiais é que nunca. Discursos emotivos, gritos de dor, serão sempre bem recebidos pois já não os ouvirei.
Por favor, escolham pessoas da mesma altura para pegar aqui no defunto, quero uma última caminhada bem equilibrada.
Não me virem cinza, há que dar de comer aos bichos.
Quanto à marcha fúnebre, soará imperiosamente: “I am the walrus ” dos Beatles. Sou o homem ovo. Na frigideira, hei-de estrelar o coração. E tenho pensado.

Flash gordo

Sou invejoso. Poderia usar eufemismos, mas onde me levariam? À luta entre palavras mais macias. Detesto embrulhos, é uma perda de tempo e papel. Por isso, todos os dias de manhã, ao olhar para a minha barriga proeminente, a cicatriz na zona lombar, a calvície prematura, digo sem complexos: invejo-te.

Sou provocador. Poderia usar eufemismos, mas onde me levariam? À luta entre palavras mais macias. Detesto embrulhos, é uma perda de tempo e papel. Por isso, todos os dias de manhã, ao olhar para a minha barriga proeminente, a cicatriz na zona lombar, a calvície prematura, peço sem complexos: provoca-me.

Sou narcisista?
Só depois da inveja e da provocação.

Sou frustrado?
Talvez, ainda não bati em ninguém.

Nem mimos?
Sim, já pintei a cara.

quarta-feira

The perfect family

The priest


"As fodas que não dei"- assim começa o mais recente livro do padre Vitorino. Homem dos quase trinta ofícios, Vino (gentileza da engomadeira vitalícia) escreveu esta obra maior nos intervalos do programa da manhã em que opina sobre a desgraça alheia. Ele, pelo contrário, é um ser de bem com a vida que Deus Nosso Senhor lhe reservou. Apesar da sua cultura literária não ultrapassar a descrição do Ramalhete de "Os Maias", Vino tem o dom de sempre se fazer ouvir com bastante devoção.

O céu está conquistado e o próximo passo para a fama virá com a criação do clube de fãs. Aceitam-se, desde já, as primeiras inscrições, sendo que todas as receitas revertem para a caixa das Madalenas quase reformadas.

Ao fã número um ser-lhe-á dada a possibilidade de rever o próximo livro que o Vino ultima na sua quinta, entre um licor e outro, cujo tema anda à volta das posições da criada sobre o ontem, hoje e amanhã. Para os mais ávidos de informação, o livro tem o lindo título poético : " Há um padre dentro de mim".

The sister of the priest

Ludovina, desde as partilhas, detesta o padre Vino, mas há mais...

Nunca perdoou o seu único irmão, por este não ter celebrado as missas dos seus cinco casamentos e cinco funerais dos respectivos cinco esposos.

Pousa sempre na mesinha de cabeceira, em breve descanso, a sua companhia nocturna ao lado de um maçudo livro que o querido filho dos seus pais em tempos lhe aconselhou.
Jamais o lera, nem mesmo quando esteve em repouso absoluto durante 25 dias. Foram tempos difíceis esses, mas compensadores para a sua eterna juventude.

Agora, Bina (cortesia do tenro jardineiro das quintas) é uma couve de bruxelas sempre fresca, mesmo que já fale sozinha; ao ver a fotografia dos seus 10 gatos malhados; coisas do género: meus amores, como estaremos daqui a uns anos?

E pensar que, para tal, bastou juntar 20 códigos de barras de um qualquer detergente para a loiça e colá-los numa revista social.

Vino´s nephew

Augusto Viriato nasceu amarelo, mas hoje é um lindo exemplar do macho minhoto, embora ao acordar não aprecie a sua beleza pois o cabelo tapa-lhe os olhos.

Interessado pelas causas fracturantes, seja lá o que isso significa, Auvi (cortesia do mecânico da família) é um acérrimo defensor da masturbação assistida.

Desde os tempos em que era levado, pela mão da engomadeira, para as sessões de catequese ministradas pelo tio, Auvi está sempre a mexer nas orelhas de mulheres católicas ou não.

Precoce como poucos, Augusto Viriato só duvidou da sua masculinidade pró-vaginal durante os breves instantes da colonoscopia a que foi sujeito.

A mãe galinha Ludovina mima-o com os mais de vinte possíveis padrastos. Ao olhar para a garagem, o Vianense anti-folclore agradece a Deus tanta fartura.

Jovem empresário de sucesso no ramo imobiliário, Auvi ainda tem tempo para gerir gratuitamente a fortuna do tio padre e escritor Vino , afinal os terços rezados em conjunto representam a dádiva compensadora da ausência paternal.

terça-feira

Da caixa de sapatos

Tiro não um
mas o meu cordão umbilical
de pó limpo com a alma
sorrio aos dentes caídos
e tapo saudades.

quinta-feira

Cardápio pessoal e transmissível

Não sou tecto
nem cigarro cravado à culpa

Não sou árvore
lamento respirar gente

Não sou mágoa
no presente em fios-lã

Não sou espelho
prestes a virar borbulha

Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu

Agrafo saudades à testa
sirvo bandeja de vísceras

Não sou dívida
por entre facturas expostas

Não sou canja
nem visto pele de galinha

Não sou linha
alguém me atropelou

Não sou pretexto
com sorte talvez apêndice

E eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu

Agrafo saudades à testa
sirvo bandeja de vísceras
entorno a sopa dos tristes
num compasso binário

e-u e-u

segunda-feira

Para lá

quatro minutos para as seis
e o céu passa-me ao lado
como sempre
um mal de amor
indigesto
em dois segundos
arrota nos pés
o azul que ainda persigo.