sexta-feira

ONTEM

Pensei
todas as manhãs penso
atropelar a mulher de chinelos plásticos mais avental pijama
uma pena ser tão simpática
e esboçar sorriso apenas com seus dentes frontais.

Sacudi caspa do casaco
fiz contas de somar com os dedos na secretária
multipliquei dinheiro alheio já anteriormente multiplicado a suor.

Bocejei
nem sei bem a razão
mas quem disse que era preciso motivo?

Fiz um poema enviesado
seja lá isso o que for
prostra-se quase sempre ao amor.

Vi um filme
postal de outros filmes
ensurdeci com som do piano inexistente.

Ramirezzi sem nome virou peixe de esgoto
paz à sua barbatana.

Chorei penas
depois desisti
recordei uma minha tia:
- A masturbação é um mal menor.

quinta-feira

Instalação

Sobre a mesa
nódoa de toalha
bordado chinês
menina nua atira
sapato direito vermelho
jaz no aquário bóia
e pronto
batam palmas
se quiserem
sigam
por favor
retirem a mesa
vistam menina
um segundo
e pronto
entrem
se quiserem
por favor
sobre a mesa
nódoa de toalha
bordado chinês
menina nua atira
sapato direito vermelho
jaz no aquário bóia
batam palmas
se quiserem
sigam

quarta-feira

Numa Quarta-feira

Carpideira embuchou sorrisos cariados
Fritou-se sonho em lençóis de linho
Rolou olho míope na chapa-zinco
Diagnóstico revelado foi lua preguiçosa
Houve tempo para o suor esfriar
Lágrima vazou ao pé-coxinho
Princesa seropositiva negou sua condição
Fígado licitou copo de água baço
Berma não esperou pelo táxi
Alguém fez um aborto à poesia
Casaco virou casaca do avesso
Ámen esfomeado devorou hóstia
Depilaram-se promessas com cera de Fátima

terça-feira

PENSAMENTO

Resolvi pensar
Tranquei-me numa casca de noz
Pedi emprestado quarto da lua
Esmaguei ilusão com dois ramos de salsa
Mandei passear lençol pela avenida
Entretanto, já havia pensado

segunda-feira

Pela cortiça adentro

Menina roça coxas na casca
Pardal troca olhos e esconde bico
Mesmo despido é natureza
Abaixo plástico
Viva o método das temperaturas
Abade roça pança na casca
Pardal sofre diarreia de penas
Mesmo careca é natureza
Abaixo plástico
Viva mais um filho da catequese
Beberá aloé vera
Comerá alfazema
E ainda terá pulmão para umas barbas de milho
Tocará concertina numa desgarrada com o pardal
Fará cócegas à lua
Tudo isto na sombra de um sobreiro.

sexta-feira

Se sou

Sou capaz de borrar o pôr-do-sol
Sou capaz

A aprendizagem?
Fi-la mastigando palavras
O bolo?
Qualquer história enviesada

É freira com seu ananás num frenético acto penitencial
Ai Jesus e os bicos de papagaio

É viúva mais seu choro compulsivo pois carteiro não passara
Ai Jesus e a maldita mudança do tempo

Hoje, vesti preto
Julguei-me capaz.

quinta-feira

Na reforma

Sou tal e qual
Bonifrate revestido a pele
Desfaço gestos sincopados

Corpo de linhas soltas
Uma mão prendeu-se ao peito
Um pé rasteja no céu

Boca cosida a ponto cruz
Psoríase em retalhos bombazina

Estafeta de Deus
Ora vem com selo
Ora se é capaz

Dispenso palmas
Velhas rugosas
Puxam lustro a visigodos

Dispenso-me
Pois lamento
Já não sou um homem maquinal.

quarta-feira

Abat jour

Carrego dilema. Num apelo premente à fantasia, forro-me a pano rendilhado de cor viva que tal vida prostrada não iluminará. Seja por remorso, ou por presença, interruptor prolonga namoro à faísca assim como os dedos deslizam no peito marcado pela saudade. Com cortina entreaberta, com tecto feito sombra, a noite há-de aparecer. Trará companhia? A lua, já não arrisca palpites, cansou-se de esperar pela maré-cheia. O fumo distrai-se na sua dança sem par e esbarra nos rostos colados ao passado em teias de aranha ávidas de uma qualquer tortura. O cheiro é sentido. Ainda cheira a ontem. Estou perante mim ou não estarei perante alguém? Meras cogitações diluem-se no lirismo bacoco da almofada absorta. Sim! Acusa a recusa em depositar sonhos e eu já nem sei quem me amparará.

terça-feira

Photoshop

Estou no parapeito, com vista para o pomar, naquele pedaço de tempo que é um tempo só para mim. Mãos trémulas lançam as últimas beatas de cigarro saudade e fertilizante do meu cortex. Por acaso, quis brisa soprar uns prantos. A Cerejeira esquelética sentiu, tomou-se de dores, com suas folhas a estremecerem quais espasmos de medo. O Castanheiro calvo, robusto companheiro de sombra, amparou-a não fosse seu choro contagiar canteiro das rosas intrusas. Lá longe, quase na Lua, sorriam com desgosto alheio as laranjas lilases. Tão malvadas mas tão desejadas, pois se uns preferem maçãs há quem simplesmente mate fome e desejo com uma impressão a cores esbatida. Numa montagem de mágoa, manipulação é acto reflectido. Mil vezes; sem conta para prestar, nem tecto para abrigar; coração fecha-se como janela que estou a fechar. Amanhã, mais parapeito, menos vista, mais cigarro, menos beatas, mais pomar, menos fruta. Talvez, quem sabe, rosas pretas às bolinhas amarelas.

sexta-feira

Infinidade

Sete gomos de céu
matam desejo dos outros
nuns lábios tão imperfeitos
quis saudade apartar
em minguantes suspiros
sou expelido
assim como neblina
pairo augusto
assim como vento
morre algures
a tristeza que me define

quinta-feira

TERIA SIDO MAIS FÁCIL

Escrevo uma frase e apago.
Escrevo uma frase e apago
Escrevo uma frase e apag
Escrevo uma frase e apa
Escrevo uma frase e ap
Escrevo uma frase e a
Escrevo uma frase e
Escrevo uma frase
Escrevo uma fras
Escrevo uma fra
Escrevo uma fr
Escrevo uma f
Escrevo uma
Escrevo um
Escrevo u
Escrevo
Escrev
Escre
Escr
[Esc]

quarta-feira

OBRA SOBRINHA

Meus raros
Não fiquem abismados
É verdade o que vos digo
Ou um fardo feito saco de pancada

Meus raros
Não fiquem chorosos
Intróito velado
Reclama versos sentidos

Posto isto
Obra sobrinha escrita
Só possível por ausência da prima
Essa triste apontada
Deixou-se quedar em bronze
Nos banhos de luar
Honra lhe seja feita
Escolheu o quarto crescente
Para compensar crónica miopia

Ah meus raros que de tão raros os julgo familiares
Não fiquem abismados
Nem tampouco chorosos
A sobrinha furou orelhas
Já pendura saudades
E até dizem ser feliz pelas suas varizes

terça-feira

HAJA PACIÊNCIA

Há quem tenha irmãos em frascos
Eu tenho-os pendurados

Há quem contribua para o peditório
Eu cuspo na sopa dos tristes

Há quem cambaleie até à anca
Eu nem ouso usar tacão alto

Há quem faça cartas de amor
Eu já lambi muitos envelopes

Há tanto tempo, que se faz tarde, para me calar.

sexta-feira

MANIFESTO QUALQUER COISA

O tempo mudou
Tomei-lhe as dores
Por não saber pintar sonhos
Declarei-me poeta
Quis crer num qualquer “foram felizes até à placa dentária”
Bastou
Andor que a Santa lavou-se em lágrimas
De espirro em espirro
Flores do adro constiparam
O tempo mudou
Agora, faço ondas ao cartão magnético
Subtil forma de estrabismo colectivo
Pois, pois, pois
Pois somos uma migalha dessa grande brioche que é o mundo
Bem-haja
Aquele capaz de assoar nariz ao umbigo
Vá para escroto que o ampare
Julgam-me desconexo?
Meus caros, não escrevo para mim
Faço-o por mim e por todos quanto abrigo
Na verdade, sou pelos indigentes
Até comem papas dos meus neurónios
Mas calma
Hoje, sou inatingível
Amanhã, cortar-me-ão a meta
Allez, allez
Sardinha já pinga
Na broa da minha tia

quinta-feira

Amor, Deus e Matemática pelo retrovisor

Amor é vidro cravado no caule de uma flor que brota no esgoto da praça varrida pelo pombo prestes a virar canja.
Deus fala muitas línguas, eu falo somente as que consigo descodificar na alma.
Somo desastres e por fim é amanhã.

Ontem à noite

Sentado na sanita
Li que o amor tem medidas
Quantas se podem fixar
Em post-it ou íman
No frigorífico
Na marquise
Juras pelo corpo inteiro
Aluguer da lua por um par de beijos
Faz sentido
Ainda que o horóscopo semanal não faça
Pensei qual será o motivo
Desencontro de expectativas?
Estaria já na minha quinta teoria
Eis que ouvi a razão do estômago
Fui jantar
Sopa da melhor couve empacotada
Vibratos de carbono
Mais cheiro a carne
E a companhia?
Discreta, confidente
Como é óptima a parede vermelha da sala de jantar.

terça-feira

À mesa

Vou soprar as migalhas
[Faz anos que a gata cinzenta, que se chamava Cinzenta, foi atropelada por uma bengala]

Vou tombar garrafa de água
[Talvez construa uma cascata, entre mesa e chão, com meia dúzia de virgens suicidas]

Intervalo
[Revela decisão e caminho embora não saia da rotunda]

Ah vaca
Tão vaquinha
Amo-te assim
Santa
Minha santinha
Sem disfarces
Nem bigode

Intervalinho
[Estes delírios são rasteiros, ainda jazem na recusa do cabrão abatinado em fazer-me engolir a hóstia]

Ui! Que fome

Conto as migalhas
[Há quem desfaça carneiros com dedos apontados ao tecto]

Espalmo garrafa de água
[E a cerveja acabou, na certeza porém que a noite será uma urina]

Fim
[Nem sempre se foge às convenções]